Cartilha anos 80 de Maduro
O petro não é uma criptomoeda, mas um ativo
digital atrelado a outro físico, no caso, os barris de petróleo
Monica De Bolle, O Estado de S.Paulo
22 Agosto 2018 | 04h00
Vou revelar minha idade: tenho lembranças
vívidas da turbulência brasileira dos anos 80, dos planos fracassados, dos
zeros cortados, dos preços congelados e posteriormente descontrolados, e das
desvalorizações sucessivas. A cartilha seguida pelo Brasil, pela Argentina,
pelo Uruguai, entre outros, para lidar com as hiperinflações que os assolavam
era sempre mais ou menos a mesma – engendrava-se uma maxidesvalorização da
moeda, obliterava-se punhado de zeros, geralmente três para facilitar, e
atrelava-se novamente o valor da moeda local ao dólar. Desde 1938, o Brasil
teve nove moedas até chegar ao real. Várias dessas “reformas monetárias”
envolveram cortes de zeros, e a maioria ocorreu durante planos de estabilização
econômica que tinham como um de seus principais objetivos reduzir a inflação.
É claro que, no contexto latino americano dos
anos 80, diferentes governos tentaram implantar outras reformas, junto com a
cartilha monetária, para controlar a inflação. Quase todos lançaram mão de
congelamentos de preços, alguns tentaram emplacar ajustes fiscais, vários
recorreram ao FMI.
Contudo, sabemos como a história terminou,
sobretudo no Brasil e na Argentina: fracassos recorrentes, hiperinflações
renitentes, e crises externas em série. A Argentina conseguiu eliminar a
hiperinflação no início dos anos 90 com plano que, década mais tarde e após
várias intempéries e má gestão econômica, acabou resultando na pior crise de
sua história.
Já o Brasil finalmente desmontou o processo hiperinflacionário
com o Plano Real e com as reformas que o acompanharam. Apesar de termos tido
desajustes econômicos desde então, jamais retornamos aos níveis estratosféricos
de alta de preços que nos assombraram por mais de duas décadas até 1995. Evidentemente,
é importante entender porque a hiperinflação jamais voltou. Para isso, é
importante compreender o que é uma hiperinflação.
Mais do que a alta galopante e desordenada de
preços, a hiperinflação é espelho da falência institucional generalizada de um
país. Trata-se não apenas de políticas econômicas malfeitas, mas de bancos
centrais destruídos, ministérios da fazenda cupinizados pela interferência
política e governos incapazes ou refratários a introduzir reformas que
reconstruam o que foi severamente danificado.
Voltando à Venezuela, estima o FMI que o país
terá inflação de 1.000.000% esse ano – ou, um milhão por cento de aumento
generalizado dos preços. Para contextualizar – se é que alguém consegue
vislumbrar o que é uma inflação dessa magnitude – em novembro de 2008 a
inflação anualizada do Zimbábue alcançou 79.600.000.000%. Ou seja, a Venezuela
ainda pode superar o Zimbábue, e, a julgar pelas medidas anunciadas por Maduro,
não é improvável que o faça.
Tal qual fizeram os governos latino-americanos
dos anos 80, o plano econômico recém-anunciado de Maduro envolve corte de cinco
zeros dos preços cotados em bolívares e uma maxidesvalorização de 95% da moeda.
A maxidesvalorização da moeda é necessária para enfrentar a dramática restrição
de dólares que aflige o país, sobretudo diante da brusca queda da produção de
petróleo, única porta de entrada para a moeda norte-americana, observada nos
últimos 12 trimestres consecutivos.
O terceiro pilar do plano de Maduro é o que
mais diverge da cartilha anos 80 e o que aponta o fracasso inevitável: disse o
líder venezuelano que a moeda estará a partir de agora atrelada ao petro, a
invencionice de alguns meses atrás. O petro é um ativo virtual cujo valor
depende do petróleo que a Venezuela extrai em cada vez menor quantidade. Ao
contrário do que diz o governo, o petro não é uma criptomoeda, mas um ativo
digital atrelado a outro físico, no caso, os barris de petróleo. A ironia é que
o petro foi introduzido justamente para atenuar a falta de credibilidade do
bolívar, ao qual agora está amarrado. Sem falar que a credibilidade do petro
sempre dependeu da credibilidade do governo Maduro, isto é, inexiste.
O restante do plano de Maduro prevê aumento de
3.000% do salário mínimo e cortes nos subsídios de combustíveis. Ou seja, o
novo bolívar, denominado de “bolívar soberano” introduzido em 21 de agosto de
2018, tem tudo para ser um retumbante fracasso. O custo incalculável para o
povo venezuelano é crime econômico que deveria ser denunciado por todos os
governos da região, e por qualquer um que se pretenda presidente do Brasil.
ECONOMISTA, PESQUISADORA DO PETERSON INSTITUTE
FOR INTERNATIONAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY